segunda-feira, 1 de junho de 2015

Crônica

O Homem Nu
Fernando Sabino
          Ao acordar, disse para a mulher:
          — Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa.  Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
          — Explique isso ao homem — ponderou a mulher.
          — Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.
          Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão.  Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
          Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:
          — Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.
Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares...  Desta vez, era o homem da televisão!
Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:
           — Maria, por favor! Sou eu!
Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.
Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
          — Ah, isso é que não!  — fez o homem nu, sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!
          — Isso é que não — repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar.  Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador.  Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer?  Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.
            — Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.
Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:
            — Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso.  — Imagine que eu...
A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:
            — Valha-me Deus! O padeiro está nu!
E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:
            — Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:
            — É um tarado!
            — Olha, que horror!
            — Não olha não! Já pra dentro, minha filha!
            Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
            — Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
            Não era: era o cobrador da televisão.

Esta é uma das crônicas mais famosas do grande escritor mineiro Fernando Sabino. Extraída do livro de mesmo nome, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 65.

    1. O que gerou o conflito da narrativa? 
    2. Qual é o enredo ou conflito da narrativa? 
    3. Que palavras do texto pode substituir a expressão “parar repentinamente?” 
    4. Qual a causa ou motivo que levou o homem a se esconder para não debitar a dívida? 
    5. Copie um trecho do texto que expresse ideia de humor. 
    6. Copie do texto um trecho referente ao tempo cronológico. 
    7. Quais são os personagens principais do texto? 
    8. Quais os personagens secundários? 
    9. Com que finalidade o cronista nos propõe esta crônica? 
    10. De que maneira o cronista se expressa para finalizar sua história?  


quinta-feira, 28 de maio de 2015

Crônica

A Bola     
O pai deu uma bola de presente ao filho. Lembrando o prazer que sentira ao ganhar a sua primeira bola do pai. Uma número 5 sem tento oficial de couro. 
Agora não era mais de couro, era de plástico. Mas era uma bola. 
O garoto agradeceu, desembrulhou a bola e disse "Legal!". Ou o que os garotos dizem hoje em dia quando gostam do presente ou não querem magoar o velho. Depois começou a girar a bola, à procura de alguma coisa. 
- Como é que liga? - perguntou. 
- Como, como é que liga? Não se liga. 
O garoto procurou dentro do papel de embrulho. 
- Não tem manual de instrução? 
O pai começou a desanimar e a pensar que os tempos são outros. Que os tempos são decididamente outros. 
- Não precisa manual de instrução. 
- O que é que ela faz? 
- Ela não faz nada. Você é que faz coisas com ela. 
- O quê? 
- Controla, chuta... 
- Ah, então é uma bola.
- Claro que é uma bola.
- Uma bola, bola. Uma bola mesmo.
- Você pensou que fosse o quê?
- Nada, não. 
O garoto agradeceu, disse "Legal" de novo, e dali a pouco o pai o encontrou na frente da tevê, com a bola nova do lado, manejando os controles de um videogame. Algo chamado Monster Baú, em que times de monstrinhos disputavam a posse de uma bola em forma de blip eletrônico na tela ao mesmo tempo que tentavam se destruir mutuamente. 
O garoto era bom no jogo. Tinha coordenação e raciocínio rápido. Estava ganhando da máquina. O pai pegou a bola nova e ensaiou algumas embaixadas. Conseguiu equilibrar a bola no peito do pé, como antigamente, e chamou o garoto. 
- Filho, olha. 
O garoto disse "Legal" mas não desviou os olhos da tela. O pai segurou a bola com as mãos e a cheirou, tentando recapturar mentalmente o cheiro de couro. A bola cheirava a nada. Talvez um manual de instrução fosse uma boa ideia, pensou. Mas em inglês, para a garotada se interessar. 
Luiz Fernando Veríssimo 
Atividades
1) O primeiro parágrafo do texto compara a primeira bola do pai, que ele ganhara de presente na infância, com a bola que ele comprou para seu filho. Quais as principais diferenças entre esses dois objetos?

2) O que teria levado o menino a fazer perguntas como "Como é que liga?", "Não tem manual de instrução?" ou "O que ela faz?" Será que, há alguns anos, os brinquedos propiciavam esse tipo de pergunta?

3) Observe o seguinte fragmento do texto: "O garoto agradeceu, disse 'Legal' de novo, e dali a pouco o pai o encontrou na frente da tevê, com a bola nova ao lado, manejando os controles de um videogame". A reação do menino, ao receber o presente evidenciou empolgação? Por quê?
4) Imagine uma possível reação caso o menino tivesse, de fato, gostado bastante do presente.
5) No antepenúltimo parágrafo do texto, o pai faz uma outra tentativa para cativar a atenção do filho. O que ele fez? Ele obteve sucesso? Qual a frase do texto que evidencia a reação do menino?

6) O texto é narrado em 1ª ou 3ª pessoa? Justifique:

7) O texto "A Bola" é uma crônica. Por quê? É uma crônica humorística ou reflexiva?
8) Qual é o ambiente, ou seja, o espaço onde a história se desenvolve? Justifique com trechos do texto

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Atividades para o 9º ano

Leia o poema de Irandé Antunes e responda as questões propostas:

Subi a porta e fechei a escada.
Tirei minhas orações e recitei meus sapatos.
Desliguei a cama e deitei-me na luz.

Tudo porque
Ele me deu um beijo de boa noite...

1-      O poema apresenta problemas de escrita ou de pontuação? Está na linguagem coloquial ou na norma-padrão?
2-      Se o poema for lido isoladamente pode ser considerado coerente? Por quê?
3-      Indique a correlação lógica entre verbos e complementos:
( a ) subi                                 (  ) minhas orações
( b ) fechei                              (  ) a luz                                 
( c ) tirei                                 (  ) na cama
( d ) recitei                             (  ) a escada
( e ) desliguei                         (  ) a porta
( f ) deitei-me                         (  ) meus sapatos

4-      Nas duas últimas linhas do texto, é revelado um fato que modifica o sentido das três linhas iniciais.
a)      Que fato é esse?
b)      Esse fato afeta a coerência do texto como um todo? Justifique.
c)      O que a construção dos três primeiros versos revela sobre o eu-lírico?

5-      Como se classificam as conjunções “e” e “porque” que aparecem no poema?

6-      O eu-lírico é feminino ou masculino? Justifique com fragmento do texto.


7-      Reescreva o poema de forma que ele fique coerente do ponto de vista gramatical e passe os verbos que estão no pretérito perfeito para o presente do indicativo.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Atividades_Orações Subordinadas Adverbiais

1- Classifique as orações subordinadas adverbiais abaixo:
proporcionais, temporais, conformativas, causais, condicionais, concessiva, finais

a) Hoje estou com um humor péssimo, porque briguei com mamãe.

b) Quando acordei, minha bolsa havia sumido.

c) Conforme eu já sabia, tirei nota baixa.

d) Ainda que eu sofra, não voltarei.

e) Caso você saia, feche a porta. 

f) Estudei o assunto para que pudesse ir bem na prova.

g) À medida que ia lendo o livro ,entendia o assunto..

h)  Quanto mais ele mente, mais se atrapalha.

i) À proporção que estuda, mais aprende.
       

2- A conjunção como pode expressar ideia de causaconformidade ou comparação. Que ideia ela expressa em cada uma das orações abaixo?

a) Prepare esses sanduíches como expliquei.
b) Esse garoto joga tão bem como os profissionais.
c) Como havia pouca gente, a reunião foi adiada.
d) Como eu previa, nosso plano funcionou direitinho.
e) Hoje está fazendo tanto calor como ontem.
f) Nada saiu como esperávamos.

3- COMPLETE OS ESPAÇOS COM AS CONJUNÇÕES SUBORDINATIVAS INDICADAS NOS PARÊNTESES:

a)      Seria mais poeta......... fosse menos político.(condicional)
b)      Tudo foi planejado ...................... não houvesse falhas.(finalidade)
c)      Dona Luísa fora para lá ................ estava só.(causal)
d)..............................o tempo passa ,mais saudades eu sinto.(proporcional)
e) Falou tanto na reunião.........ficou rouco.(causal)
f)..................fosse convidado ,não iria  à reunião.(concessiva)
g)     ................................... o que eu havia dito, não viajarei.(conformidade)
h)  Fiz-lhe sinal .............. se calasse.(finalidade)
i)A emoção foi .................grande ..............desmaiou.(consecutiva)

4- (PUC-SP) No período: "Da própria garganta saiu um grito de admiração, que Cirino acompanhou ,embora com menos entusiasmo", a palavra destacada expressa uma ideia de:
a) explicação.  
b) concessão.     
c) comparação.       
d) modo.        
e) consequência.


5- No quadrinho do cartunista Quino, encontramos a conjunção mas, que pode ser classificada como:
 "a preguiça é mãe de todos os vícios, mas uma mãe é uma mãe e é preciso respeitá-la e pronto!"

a) Conjunção consecutiva.
b) Conjunção aditiva.
c) Conjunção adversativa.
d) Conjunção alternativa.
e) Conjunção conclusiva.

6. Relacione as orações coordenadas por meio de conjunções indicadas nos parênteses:

a) Ouviu-se o som da bateria. Os primeiros foliões surgiram. (Aditiva)
b) Não durma sem cobertor. A noite está fria. (Explicativa)
c) Quero desculpar-me. Não consigo encontrá-los. (Adversativa)

7. (PUC-SP) – Em: “... ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas...” a partícula como expressa uma ideia de:

a) causa
b) explicação
c) conclusão
d) proporção
e) comparação


8. (Univ. Fed. Santa Maria – RS) – Assinale a sequência de conjunções que estabelecem, entre as orações de cada item, uma correta relação de sentido.

1. Correu demais, ... caiu.
2. Dormiu mal, ... os sonhos não o deixaram em paz.
3. A matéria perece, ... a alma é imortal.
4. Leu o livro, ... é capaz de descrever as personagens com detalhes.
5. Guarde seus pertences, ... podem servir mais tarde.

a) porque, todavia, portanto, logo, entretanto
b) por isso, porque, mas, portanto, que
c) logo, porém, pois, porque, mas
d) porém, pois, logo, todavia, porque
e) entretanto, que, porque, pois, portanto

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Biruta (Lygia Fagundes Telles)

Biruta
Lygia Fagundes Telles
Alonso foi para o quintal carregando uma bacia cheia de louça suja. Andava cm dificuldade, tentando equilibrar a bacia que era demasiado pesada para seus bracinhos finos.
  - Biruta, eh, Biruta! - chamou sem se voltar.
O cachorro saiu de dentro da garagem. Era pequenino e branco, uma orelha em pé e a outra completamente caída.
  - Sente-se aí, Biruta, que vamos ter uma conversinha - disse Alonso pousando a bacia ao lado do tanque. Ajoelhou-se, arregaçou as mangas da camisa e começou a lavar os pratos.
  Biruta sentou-se muito atento, inclinando interrogativamente a cabeça ora para a direita, ora para a esquerda, como se quisesse apreender melhor as palavras do seu dono. A orelha caída ergueu-se um pouco, enquanto a outra empinou, aguda e ereta. Entre elas, formaram-se dois vincos, próprios de uma testa franzida do esforço de meditação.
  - Leduína disse que você entrou no quarto dela - começou o menino num tom brando. - E subiu em cima da cama e focinhou as cobertas e mordeu uma carteirinha de couro que ela deixou lá. A carteira era meio velha e ela não ligou muito. Mas se fosse uma carteira nova, Biruta! Se fosse uma carteira nova! Me diga agora o que é que ia acontecer se ela fosse uma carteira nova!? Leduína te dava uma surra e eu não podia fazer nada, como daquela outra vez que você arrebentou a franja da cortina, lembra? Você se lembra muito bem, sim senhor, não precisa fazer essa cara de inocente!...
  Biruta deitou-se, enfiou o focinho entre as patas e baixou a orelha. Agora, ambas as orelhas estavam no mesmo nível, murchas, as pontas quase tocando o chão. Seu olhar interrogativo parecia perguntar:
"Mas o que foi que eu fiz, Alonso? Não me lembro de nada..."
  - Lembra sim senhor! E não adianta ficar aí com essa cara de doente, que não acredito, ouviu? Ouviu, Biruta?! - repetiu Alonso lavando furiosamente os pratos. Com um gesto irritado, arregaçou as mangas que já escorregavam sobre os pulsos finos. Sacudiu as mãos cheias de espuma. Tinha as mãos de velho
  - Alonso, anda ligeiro com essa louça! - gritou Leduína, aparecendo por um momento na janela da cozinha. - Já está escurecendo, tenho que sair!
  - Já vou indo - respondeu o menino enquanto removia a água da boca. Voltou-se para o cachorro. E seu rostinho pálido se confrangeu de tristeza. Por que Biruta não se emendava, por que? Por que razão não se esforçava um pouco para ser melhorzinho? Dona Zulu já andava impaciente. Leduína também. Biruta fez isso, Biruta fez aquilo...
  Lembrou-se do dia em que o cachorro entrou na geladeira e tirou de lá a carne. Leduína ficou desesperada, vinham visitas para o jantar, precisava encher os pastéis, "Alonso, você não viu onde deixei a carne?" Ele estremeceu. Biruta! Disfarçadamente, foi à garagem no fundo do quintal, onde dormia com o cachorro num velho colchão metido num ângulo de parede. Biruta estava lá deitado bem em cima do travesseiro, com a posta de carne entre as patas, comendo tranquilamente. Alonso arrancou-lhe a carne, escondeu-a dentro da camisa e voltou à cozinha. Deteve-se na porta ao ouvir Leduína queixar-se à dona Zulu que a carne desaparecera, aproximava-se a hora do jantar e o açougue já estava fechado, "o que é que eu faço, dona Zulu?"
  Ambas estavam na sala. Podia entrever a patroa a escovar freneticamente os cabelos. Ele então tirou a carne de dentro da camisa, ajeitou o papel já todo roto que a envolvia e entrou com a posta na mão
  - Está aqui Leduína.
  - Mas falta um pedaço!
  - Esse pedaço eu tirei pra mim. Eu estava com vontade de comer um bife e aproveitei quando você foi na quitanda.
  - Mas por que você escondeu o resto? - perguntou a patroa, aproximando-se
  - Por que fiquei com medo.
Ele ainda tinha bem viva na memória a dor brutal que sentira nas mãos corajosamente abertas para os golpes da escova. Lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Os dedos foram ficando roxos, mas ela continuava batendo com aquele mesmo vigor obstinado com que escovara os cabelos, batendo, batendo, como se não pudesse parar mais.
  - Atrevido! Ainda te devolvo pro asilo, seu ladrãozinho!
  Quando ele voltou à garagem, Biruta já estava lá, as duas orelhas caídas, o focinho entre as patas, piscando, piscando os olhinhos ternos. "Biruta, Biruta, apanhei por sua causa, mas não faz mal."
  Biruta então ganiu sentidamente. Lambeu-lhe as lágrimas. Lambeu-lhe as mãos.
  Isso tinha acontecido há duas semanas. E agora Biruta mordera a carteirinha de Leduína. E se fosse a carteira de dona Zulu?
  - Hem, Biruta?! E se fosse a carteira de dona Zulu?
  Já desinteressado, Biruta mascava uma folha seca.
  - Por que você não arrebenta minhas coisas? - prosseguiu o menino elevado a voz. - Você sabe que tem todas as minhas pra morder, não sabe? Pois agora não te dou presente de Natal, está acabado. você vai ver se ganha alguma coisa. Você vai ver!...
  Girou sobre os calcanhares, dando as costas ao cachorro. Resmungou ainda enquanto empilhava a louça na bacia. Em seguida, calou-se, esperando qualquer reação por parte do cachorro. Como a reação tardasse, lançou-lhe um olhar furtivo. Biruta dormia profundamente.
  Alonso então sorriu. Biruta era como uma criança. Por que não entendiam isso? Não fazia nada por mal, queria só brincar... Por que dona Zulu tinha tanta raiva dele? Ele só queria brincar, como as crianças. Por que dona Zulu tinha tanta raiva de crianças?
  Uma expressão desolada amarfanhou o rostinho do menino. "Por que dona Zulu tem que ser assim? O doutor é bom, quer dizer, nunca se importou nem comigo nem com você, é como se a gente não existisse, Leduína tem aquele jeitão dela, mas duas vezes já me protegeu. Só dona Zulu não entende que você é que nem uma criancinha. Ah Biruta, Biruta, cresça logo, pelo amor de Deus! Cresça logo e fique um cachorro sossegado, com bastante pêlo e as duas orelhas de pé! Você vai ficar lindo quando crescer, Biruta, eu sei que vai!"
  - Alonso! - Era a voz de Leduína. - Deixe de falar sozinho e traga logo essa bacia. Já está quase noite, menino.
  Alonso ergueu-se afobadamente. Mas antes de pegar a bacia meteu a mão na água e espargiu-a no focinho do cachorro.
  - Chega de dormir, seu vagabundo!
  Biruta abriu os olhos, bocejou com um ganido e levantou-se, estirando as patas dianteiras, num longo espreguiçamento.
  O menino equilibrou penosamente a bacia na cabeça. Biruta seguiu-o aos pulos, mordendo-lhe os tornozelos, dependurando-se com os dentes na barra do seu avental.
  - Aproveita, seu bandidinho! - riu-se Alonso. - Aproveita que eu estou com a mão ocupada, aproveita!
  Assim que colocou a bacia na mesa, ele inclinou-se para agarrar o cachorro. Mas Biruta esquivou-se, latindo. O menino vergou o corpo sacudido pelo riso.
  - Aí, Leduína que o Biruta judiou de mim!...
  A empregada pôs-se guardar rapidamente a louça. Estendeu-lhe uma caçarola com batatas:
  - Olha aí para o seu jantar. Tem ainda arroz e carne no forno.
  - Mas só eu vou jantar? - surpreendeu-se Alonso ajeitando a caçarola no colo.
  - Hoje é dia de Natal, menino. Eles vão jantar fora, eu também tenho a minha festa. Você vai jantar sozinho.
  Alonso inclinou-se. E espiou apreensivo para debaixo do fogão. Dois olhinhos brilharam no escuro: Biruta estava lá. Alonso suspirou. Era bom quando Biruta resolvia se sentar! Melhor ainda quando dormia. Tinha então a certeza de que não estava acontecendo nada. A
trégua. Voltou-se para Leduína.
  - O que o seu filho vai ganhar?
  - Um cavalinho - disse a mulher. A voz suavizou. - Quando ele acordar amanhã, vai encontrar o cavalinho dentro do sapato dele. Vivia me atormentado que queria um cavalinho, que queria um cavalinho...
  Alonso pegou uma batata cozida, morna ainda. Fechou-a nas mãos arroxeadas.
- Lá no asilo, no Natal, apareciam umas moços com uns saquinhos de balas e roupas. Tinha uma que já me conhecia, me dava sempre dois pacotinhos em lugar de um. A madrinha. Um dia, me deu sapato, um casaquinho de malha e uma camisa.
  - Por que ela não ficou com você?
  - Ela disse uma vez que ia me levar, ela disse. Depois, não sei por que ela não apareceu mais...
  Deixou cair na caçarola a batata já fria. E ficou em silêncio, as mãos abertas em torno a vasilha. Apertou os olhos. Deles, irradiou-se para todo o rosto uma expressão dura. Dois anos seguidos esperou por ela. Pois não prometera levá-lo? Não prometera? Nem lhe sabia o nome, não sabia nada a seu respeito, era apenas " a madrinha". Inutilmente a procurava entre as moças que apareciam no fim do ano com os pacotes de presentes. Inutilmente cantava mais alto do que todos no fim da festa, quando então se reunia aos meninos da capela. Ah, se ela pudesse ouvi-lo!
                            
                                "... O bom jesus é quem nos traz
                                A mensagem de amor e alegria"...
- Também é muita responsabilidade tirar crianças para criar! - disse Leduína desamarrando o avental. - Já chega os que a gente tem...
  Alonso baixou o olhar. E de repente sua fisionomia iluminou-se. Puxou o cachorro pelo rabo. Riu-se:
  -Eh, Biruta! Está com fome, Biruta? Seu vagabundo! Vagabundo!... Sabe, Leduína, Biruta também vai ganhar um presente que está escondido lá debaixo do meu travesseiro. Com aquele dinheirinho que você me deu, lembra? Comprei uma bolinha de borracha, uma beleza de bola! Agora dele não vai precisar mais morder suas coisas, tem a bolinha só pra isso. Ele não vai mais mexer em nada, sabe, Leduína?
  - Hoje cedo ele não esteve no quarto da dona Zulu?
  O menino empalideceu.
  - Só se foi na hora em que fui lavar o automóvel... Por que Leduína? Por quê? Que foi que aconteceu?
  Ela hesitou. E encolheu os ombros.
  - Nada. Perguntei à toa.
  A porta abriu-se bruscamente e a patroa apareceu. Alonso encolheu-se um pouco. Sondou a fisionomia da mulher. Mas ela estava sorridente. O menino sorriu também.
- Ainda não foi pra sua festa, Leduína? - perguntou a moça num tom afável. Abotoava os punhos do vestido de renda. - Pensei que você já estivesse saído... - E antes que a empregada respondesse, ela voltou-se para Alonso: - Então? Preparando seu jantarzinho?
  O menino baixou a cabeça. Quando ela lhe falava assim mansamente, ele não sabia o que dizer.
  - O Biruta está limpo, não está? - Prosseguiu a mulher, inclinando-se para fazer uma carícia na cabeça do cachorro. Biruta baixou as orelhas, ganiu dolorido e escondeu-se debaixo do fogão.
  Alonso tentou encobrir-lhe a fuga:
  - Biruta, Biruta! Cachorro mais bobo, deu agora de se esconder... - Voltou-se para a patroa. E sorriu desculpando-se: - Até de mim ele se esconde.
  A mulher passou mão no ombro do menino:
  - Vou a uma festa onde tem um menino assim do seu tamanho. Ele adora cachorros. Então me lembrei de levar o Biruta emprestado só por esta noite. O pequeno está doente, vai ficar radiante, o pobrezinho. Você empresta seu Biruta só por hoje, não empresta? O automóvel ja está na porta. Ponha ele lá que já estamos de saída.
  O rosto do menino resplandeceu num sorriso. Mas então era isso?!... Dona Zulu pedido o Biruta emprestado, precisando do Biruta!... Abriu a boca para dizer-lhe que sim, que o Biruta estava limpinho, e que ficaria contente de emprestá-lo para o menino doente, estava muito contente com isso... Mas sem dar-lhe tempo de responder, a mulher saiu apressadamente da cozinha.
  - Viu, Biruta? Você vai numa festa - exclamou Alonso, beijando repetidas vezes o focinho do cachorro. - Você vai numa festa, seu sem-vergonha! Numa festa com crianças, com doces. com tudo! Mas pelo amor de Deus, tenha juízo, nada de desordens! Se você se comportar, amanhã cedinho te dou uma coisa. Vou te esperar acordado, hem? Tem um presente no seu sapato ... - acrescentou num sussurro, com a boca encostada na orelha do cachorro. Apertou-lhe a pata. - Te espero acordado, Biru ... Mas não demore muito!
  O patrão já estava na direção do carro. Alonso aproximou-se.
  - O Biruta, doutor...
  O homem voltou-se ligeiramente. Baixou os olhos.
  - Está bem, está bem. Pode deixá-lo ai atrás.
  Alonso ainda beijou furtivamente o focinho do cachorro. Em seguida, fez-lhe uma última carícia, colocou-o no assento do automóvel e afastou-se correndo.
  - Biruta vai adorar a festa! - exclamou assim que entrou na cozinha. - E lá têm doces, tem crianças, ele não quer outra coisa! - Fez uma pausa. Sentou-se. - Hoje tem festa em toda parte, não, Leduina?
  A mulher já se preparava para sair.
- Decerto.
  Alonso pôs-se a mastigar pensativamente.
  - Foi hoje que Nossa Senhora fugiu no burrinho?
  - Não, menino. Foi hoje que Jesus nasceu. Depois então é
que aquele rei manda prender os três.
  Alonso concentrou-se, apreensivo:
  - Sabe, Leduina, se algum rei malvado quisesse matar o Biruta, eu me escondia com ele no meio do mato e ficava morando lá a vida inteira, só nós dois!... - Riu-se metendo uma batata na boca. E de repente ficou sério, ouvindo o ruído do carro que já saia. - Dona Zulu estava linda, não?
  - Estava.
  - E tão boazinha também. Você não achou que hoje ela estava boazinha?
  - Estava, estava muito boazinha, sim... - concordou a empregada. E riu-se.
  - Por que você está rindo?
  - Nada - respondeu ela pegando a sacola. Dirigiu-se à porta. Mas antes, parecia querer dizer qualquer coisa de desagradável e por isso hesitava, contraindo a boca.
  Alonso observou-a. E julgou adivinhar o que a preocupava.
  - Sabe, Leduína, você não precisa dizer para Dona Zulu que ele mordeu sua carteirinha, eu já falei com ele, já surrei ele, ele não vai fazer mais isso nunca mais, eu prometo que não.
  A mulher voltou-se para o menino. Pela primeira vez encarou-o. E após vacilar ainda um instante, decidiu-se:
  - Olha aqui, se eles gostam de enganar os outros, eu não gosto, entendeu? Ela mentiu para você, Biruta não vai mais voltar.
  - Não vai o quê? - perguntou Alonso pondo a caçarola em cima da mesa. Engoliu com dificuldade o pedaço de batata que ainda tinha na boca e levantou-se. - Não vai o quê, Leduína?
  - Não vai mais voltar. Hoje cedo ele foi no quarto dela e rasgou um pé de meia que estava no chão. Ela ficou daquele jeito. Mas não te disse nada e agora de tardinha, enquanto você lavava a louça, escutei toda a conversa dela com o doutor: que não queria mais esse vira-lata, que ele tinha que ir embora hoje mesmo, e mais isso, e mais aquilo... O doutor pediu para ela esperar, que amanhã dava um jeito, você ia sentir muito, hoje era Natal... Não adiantou. Vão soltar o cachorro bem longe daqui e depois seguem para a festa. Amanhã ela vinha dizer que o cachorro fugiu da casa do tal menino. Mas eu não gosto dessa história de enganar os outros, não gosto. É melhor que você fique sabendo desde já, o Biruta não vai voltar.
  Alonso fixou na mulher o olhar inexpressivo. Abriu a boca.
A voz era um sopro quase inaudível:
  - Não? ..
  Ela perturbou-se.
  - Que gente também! - explodiu. Bateu desajeitadamente no ombro do menino. - Não se importe, não, filho. Vai, vai jantar...
  Ele deixou cair os braços ao longo do corpo. E arrastando os pés, num andar de velho, foi saindo para o quintal. Dirigiu­-se à garagem. A porta de ferro estava erguida. A luz do luar, uma luz branca e fria, chegava até a borda do colchão desmantelado.
  Alonso cravou os olhos brilhantes e secos num pedaço de osso roído, meio encoberto sob um rasgão do lençol. Ajoelhou­-se. E estendeu a mão tateante. Tirou debaixo do travesseiro uma bola de borracha.
  - Biruta - chamou baixinho. - Biruta... - repetiu. E desta vez só os lábios se moveram e não saiu som algum.
  Muito tempo ele ficou ali ajoelhado, imóvel, segurando a bola.
Depois apertou-a fortemente contra o peito, como se quisesse enterrá-la no coração.
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Conto extraído de: TELLES, Lygia Fagundes. Histórias escolhidas. São Paulo: Boa Leitura Editora, 1961.

1-    Quem são os personagens do conto?
2-    As ações convergem/direcionam para o mesmo ponto? Qual?
3-    A história acontece em um curto espaço de tempo? Delimite-o!
4-    Que tipo de linguagem é utilizada no conto: formal, regional ou objetiva/familiar?
5-    É possível deduzir em qual época acontece essa história? Comente.
6-    Em que dia do ano se passa a história? Em que momento desse dia?
7-    Por que a escolha desse dia para desfazer-se de Biruta torna mais cruel a atitude de Zulu?
8-    A ordem linear dos fatos e ações no conto Biruta foi interrompida em algum momento? Quando?
9-    Identifique , dentre os fatos abaixo, os que são contados no momento em que acontecem e os que são relembrados pelo personagem Alonso, escrevendo presente ou passado, ao lado de cada fato apresentado.
a)    Alonso lava louça numa bacia. _____________
b)    Alonso volta à garagem triste e sozinho. __________________
c)    No asilo, Alonso recebe a visita da madrinha. ________________________
d)    Alonso empresta Biruta a dona Zulu. ___________________________
e)    Animado, Alonso conversa com Leduína sobre o pedido de Zulu. __________________
f)     Dona Zulu bate em Alonso por causa da carne que Biruta roubou. __________________
g)    Leduína conta a Alonso a verdade sobre Biruta. ______________________________
h)   Alonso entrega a louça a Leduína na cozinha. ______________________________
i)     Biruta é colocado no carro e parte com Zulu e o doutor. __________________________

10- Como era Alonso física e psicologicamente?
11- Que tipo de trabalho fazia e onde dormia?
12- Como era Biruta? Por que mexia nas coisas e as estragava?
13- Como era o relacionamento de Alonso com Biruta? Por que o cãozinho era tão importante para ele?
14- Por que dona Zulu adotou Alonso?
15- Compare dona Zulu e Leduína. Que diferença há entre elas, quanto ao modo de tratar o menino?
16- Como o marido de dona Zulu se relacionava com Alonso?
17- Qual é o assunto do conto Biruta?
18- Qual é o espaço reservado a Alonso e Biruta na casa de dona Zulu?
19- Que relação há entre esse espaço e a forma como Alonso é tratado pela dona da casa?
20- Verossimilhança –  o que é atribuído a uma realidade portadora de uma aparência ou de uma probabilidade de verdade. O conto “ Biruta” é verossímil? Como você o avalia?